Já faz tempo que os contribuintes reclamam da cobrança do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis – ITBI com valores maiores que os negócios feitos. Na prática, muitas prefeituras definem valores para os imóveis que são bem mais altos que o valor real da transação (compra e venda, troca, pagamento com imóvel, etc.).
As discordâncias entre o fisco e os contribuintes causaram várias discussões na justiça ao longo dos anos. Isso fez com que o poder judiciário tivesse que definir a forma correta de calcular o imposto municipal. O Código Tributário Nacional, no art. 38, apenas diz que “a base de cálculo do imposto é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos”, sem explicar o que é esse valor venal e se é o mesmo usado para o IPTU.
Na verdade, as prefeituras cobravam o imposto de forma unilateral. Elas ignoravam o valor e os documentos da negociação e definiam um valor de cobrança muito maior que o preço de compra e venda, sem dar oportunidade para a outra parte se defender.
Para tentar resolver essa questão, o Superior Tribunal de Justiça julgou o Tema Repetitivo 1113 (REsp 1937821/SP). Com essa decisão, ficou estabelecido que:
(i) A base de cálculo do ITBI (valor venal) é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU;
(ii) Em casos de imóveis arrematados em hasta pública, a base de cálculo do ITBI é o valor da arrematação, sendo considerado este o valor de mercado do bem, pois presume-se que as especificidades do imóvel (localização, tamanho, ocupação, pendencias, estado de conservação, benfeitorias e etc…) foram ponderados pelo arrematante para a realização de seu lance;
(iii) O valor da transação declarado pelo contribuinte goza de presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante instauração de processo administrativo próprio (art.148 do CTN);
(iv) O Município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido unilateralmente.
Infelizmente, essa decisão tem sido ignorada por muitas prefeituras, que continuam atribuindo valores altos aos imóveis nas transações.
Com a alegação de que estão aplicando o art. 148 do Código Tributário Nacional, os municípios têm emitido “pareceres” que definem o valor do imóvel com base em avaliações prontas. Eles não consideram as características de cada imóvel e ignoram que imóveis – mesmo no mesmo prédio – podem ter preços diferentes por causa de fatores como andar, vagas de garagem e melhorias. E o pior é que essa prática desconsidera os documentos oficiais da negociação, como o contrato de compra e venda, os comprovantes de pagamento, a escritura e o registro do imóvel, sem justificar por que esses documentos são ignorados.
Sobre isso, o STJ disse o seguinte no julgamento do REsp 1937821/SP:
Importa ressaltar que, embora seja possível dimensionar o valor médio dos imóveis no mercado, segundo critérios, por exemplo, de localização e tamanho (metragem), a avaliação de mercado específica de cada imóvel transacionado pode sofrer oscilações para cima ou para baixo desse valor médio, a depender, por exemplo, da existência de outras circunstâncias igualmente relevantes e legítimas para a determinação do real valor da coisa, como a existência de benfeitorias, o estado de conservação os interesses pessoais do vendedor (necessidade da venda para despesas urgentes, mudança de investimentos, etc.) e do comprador (escassez do imóvel na região, proximidade com o trabalho e/ou com familiares, etc.) no ajuste do preço.
Em verdade, ao fixar a base de cálculo com lastro em valor de referência previamente estabelecido, o fisco busca, de fato, realizar o lançamento de ofício do imposto, o qual, todavia, está indevidamente amparado em critérios que foram por ele escolhidos unilateralmente e que apenas revelariam um valor médio de mercado, de cunho meramente estimativo, visto que despreza as peculiaridades do imóvel e da transação que foram quantificadas na declaração prestada pelo contribuinte, que, como cediço, presume-se de boa-fé.
O Judiciário, por sua vez, muitas vezes não percebe essa manobra e simplesmente aceita o valor definido pelo fisco, alegando que houve um processo administrativo para apurar o valor do imóvel, sem verificar se esse processo foi feito corretamente. É como se um simples processo formal fosse suficiente para duvidar que o contribuinte agiu de boa-fé.
Mas é preciso analisar quais provas o Município usou no processo administrativo para questionar a declaração do contribuinte. Ou seja, é preciso verificar se foi usado apenas um valor de referência predefinido (como era feito antes da decisão do STJ) ou se houve uma análise real das informações e documentos apresentados pelo contribuinte, e se as características do imóvel foram consideradas.
Se isso não for feito, a decisão do Tema Repetitivo 1113 (REsp 1937821/SP) não terá utilidade. Bastará que o Município faça uma alegação geral em seu parecer (“processo administrativo”) para desconsiderar a declaração do contribuinte. Assim, o contribuinte terá que provar o valor de mercado do imóvel, o que não deveria acontecer.
Essa prática já foi criticada na decisão do STJ. O Ministro Relator Gurgel de Faria afirmou:
Além disso, a adoção desse valor de referência como primeiro parâmetro para a fixação da base de cálculo do ITBI, com a inversão do ônus da prova ao contribuinte para demonstrar o contrário, subverte o procedimento instituído no art. 148 do CTN, pois, a toda evidência, resulta em arbitramento da base de cálculo sem prévio juízo quanto à fidedignidade da declaração do sujeito passivo.
O Ministro Relator também esclareceu que o processo administrativo para questionar a declaração do contribuinte deve avaliar as características do imóvel, e não apenas apresentar alegações genéricas sobre o preço dos imóveis na região:
Constata-se, dessa forma, que, dadas as características próprias do fato gerador desse imposto, a sua base de cálculo deverá partir da declaração prestada pelo contribuinte, ressalvada a prerrogativa da administração tributária de revisá-la, antes ou depois do pagamento, a depender da modalidade do lançamento, desde que instaurado o procedimento administrativo próprio, em que deverá apurar todas as peculiaridades do imóvel (benfeitorias, estado de conservação, etc.) e as condições que impactaram no caráter volitivo do negócio jurídico realizado, assegurados os postulados da ampla defesa e do contraditório que possibilitem ao contribuinte justificar o valor declarado.
(…)
Nesse panorama, verifica-se que base de cálculo do ITBI é o valor venal em condições normais de mercado e, como esse valor não é absoluto, mas relativo, pode sofrer oscilações diante das peculiaridades de cada imóvel, do momento em que realizada a transação e da motivação dos negociantes.
Por isso, é importante que os juízes analisem o conteúdo dos processos administrativos abertos pelos fiscos municipais para questionar os valores declarados pelos contribuintes. Caso contrário, a decisão do Tema Repetitivo 1113 (REsp 1937821/SP) será ignorada, e o artigo 927, III do Código de Processo Civil, que determina a aplicação das decisões dos Tribunais Superiores, não será cumprido.
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