Muitos estão familiarizados com a célebre frase “pai rico, filho nobre e neto pobre”, mas será que ela realmente corresponde à realidade? Caso a resposta seja positiva, por que será que a empresa é afetada ao longo das gerações e o que se pode fazer para lutar contra esse indesejável destino?

O contexto da empresa familiar e o modelo dos 3 círculos

Embora não haja uma conceituação legal do que viria a ser uma empresa familiar, há certo consenso de que a empresa será familiar quando pessoas ligadas pelo vínculo de parentesco detiverem a totalidade ou a maior parte da titularidade dos direitos de voto, das quotas ou ações de uma organização empresarial, de tal forma que seja assegurado à família o controle societário dessa empresa.

O que muitos não sabem é que as empresas familiares representam aproximadamente 90% de todas as empresas do Brasil, percentual esse que é de aproximadamente 95% para pequenas e microempresas.

Além da representatividade, também chama atenção a “taxa de mortalidade” das empresas familiares, em estudo realizado pelo SEBRAE, relata que apenas 30% das empresas familiares chegam à segunda geração e somente 5% à terceira. Em um âmbito global, 70% das empresas familiares não passam para a geração seguinte (Harvard Business Review, 2012). Assim, confirmamos que a célebre frase “pai rico, filho nobre e neto pobre” de fato possui embasamento estatístico.

As estatísticas comprovam, mesmo que de maneira indireta, a existência de alguma(s) particularidade da empresa familiar. Talvez a  mais importante delas seja a interposição de relações que são didaticamente chamadas de “os três círculos”, recorrentemente citados nas bibliografias sobre o assunto.

A empresa familiar, possui três âmbitos:

  1. o âmbito familiar, composto pela família e agregados por afinidade;  
  2. o âmbito da propriedade, composto por àqueles que possuem quotas ou ações da empresa e;
  3. âmbito da gestão, composto por àqueles que exercem alguma função administrativa junto a empresa.

O modelo dos 3 círculos resume de maneira simples e didática este contexto que, diga-se desde já, é bastante propício para alimentar competições não saudáveis, inimizades, ruptura familiar, afastar talentos, dentre várias outras situações nocivas para a família, gestores e proprietários. Assim, conforme o modelo dos três círculos temos estes sete potenciais perfis dentro da empresa:

  • Posição de nº 1 – familiar que tem participação societária na empresa familiar e exerce cargo de gestão;
  • Posição de nº 2 – familiar, sem participação societária na empresa familiar, mas com exercício de cargo de gestão;
  • Posição de nº 3 – pessoa de fora da família controladora que detém participação societária na empresa familiar e exerce cargo de gestão;
  • Posição de nº 4 – familiar que detém participação societária na empresa familiar, mas não exerce cargo de gestão;
  • Posição de nº 5 – pessoa de fora da família controladora, sem participação societária na empresa familiar, mas detentora de cargo de gestão;
  • Posição de nº 6 – pessoa de fora da família controladora que detém participação societária na empresa familiar, mas não possui cargo de gestão
  • Posição de nº 7 – familiar que não detém participação societária sobre o negócio familiar nem cargo de gestão

Tais círculos, com suas respectivas sobreposições, demonstram que ocorre a migração de um relacionamento meramente familiar, submetido ao regramento de direito de família, para um relacionamento de sócios, submetido ao direito empresarial e societário, no qual as normas e valores são muito diferentes.

Assim, há uma verdadeira mudança das regras que se submeterão os familiares que, de parentes, passarão a ser sócios no contexto da empresa familiar, submetidos a um contrato social/estatuto social, acordo de sócios, bem como a toda uma lógica empresarial que, ao menos em tese, deveria seguir a racionalidade e meritocracia.

Direito de família x Direito societário

Importante registrar que há um grande contraste entre os princípios do direito de família com os de direito societário, sendo que o primeiro tende a prestigiar um tratamento mais engessado e igualitário, sob pena de invalidade. Já no direito societário há uma maior liberdade e, consequentemente, maior margem para a criatividade. Enquanto um parece se conectar com a hierarquia, o outro deve desenvolver estruturas que prestigiem a meritocracia, uma vez que, sendo a finalidade da empresa obter resultados positivos e duradouros, cabem aos sócios conduzi-la neste sentido.

Inclusive, cumpre destacar a elementar diferença entre herança e legitimidade. Enquanto herança é algo de direito por nascimento, a legitimidade é uma conquista pessoal que envolve competência e habilidades em conjunto com o reconhecimento e aceitação dos demais envolvidos.

Ocorre que, embora a diferença seja clara, muitas vezes os envolvidos sequer a reconhecem, ou, quando a reconhecem, negligenciam a necessidade de criar uma estrutura ou a fazem de maneira amadora. Muitos ainda optam por manter uma estrutura hierárquica retrógrada à semelhança do núcleo familiar, o que pode acabar comprometendo o sucesso da empresa.

Fato é que, seja por faltar clareza por parte do envolvidos acerca da existência de dois âmbitos muito diferentes, seja por ser realmente difícil isolar um ramo do outro, acaba ocorrendo uma confusão no que concerne aos cargos, papéis e funções durante o dia a dia da empresa e no próprio convívio familiar.

Realmente é complicado separar os papéis, pois na condição de sócios os familiares podem se comportar de forma pouco profissional, e  na condição de parentes passam a se tratar      como sócios. Na prática o que costuma acontecer é que todas as frustrações, seja no âmbito familiar ou societário, decorrentes de desentendimentos, ressentimentos, hierarquia, subordinação, competitividade, cobranças profissionais, sentimento de injustiça, dentre outros, acabam por desaguar reciprocamente no âmbito afetivo e profissional, o que afeta negativamente tanto a família como a empresa.

A empresa, por si só, já tem diversas dificuldades inerentes ao negócio, tais como:  legislação complexa e protecionista, relação com fornecedores, relação com clientes, concorrência, judiciário moroso, políticas econômicas, dentre outras. Se além dessas dificuldades a empresa tiver conflitos internos sem estruturas de composição e tomada de decisão assertivas, é de se reconhecer que o fator familiar, caso não receba os devidos cuidados, pode acabar se transformando em verdadeira desvantagem competitiva.

Dito isso, para a manutenção do sucesso da empresa no tempo, é preciso extirpar alguns traços característicos do direito de família da relação societária que rege a empresa, bem como criar um adequado fórum de discussões e tomada de decisões. Caso a meritocracia não seja prestigiada, em razão de características hereditárias e/ou da hierarquia familiar, a empresa certamente terá seus resultados e a própria continuidade colocado s em risco.

Como mudar a relação familiar na empresa por meio da governança corporativa e a governança familiar

Na medida que a empresa se desenvolve, ela se torna um verdadeiro “organismo vivo” dissociado da figura de seus fundadores, composto por diversos interessados, e, no âmbito familiar, por familiares com diferentes virtudes, defeitos, capacitações, idades, convicções, perfis e pretensões.

Nesta ordem de ideias, é preciso reconhecer que uma estrutura com tamanha diversidade, para continuar “viva”, precisa criar estruturas e instrumentos que sedimentem expectativas e evitem, ou ao menos pacifiquem, eventuais conflitos com viés de garantir a eficiência e perenidade da organização.

Deste modo, conquanto não existam normas      exigindo a criação de conselhos, dentre outros órgãos e estruturas, é necessário que o empreendedor reconheça a necessidade de, espontaneamente, se diligenciar para criar um ambiente duradouro e profissional, sob pena da empresa ter seu sucesso atrelado a de seus sócios fundadores ou de seu pequeno porte e/ou informalidade.

Nesse contexto precisamos falar sobre a Governança Corporativa que é assim definido pelo Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (“IBGC”):

Governança corporativa é o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios, conselho de administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle e demais partes interessadas. As boas práticas de governança corporativa convertem princípios básicos em recomendações objetivas, alinhando interesses com a finalidade de preservar e otimizar o valor econômico de longo prazo da organização, facilitando seu acesso a recursos e contribuindo para a qualidade da gestão da organização, sua longevidade e o bem comum.”

É de se ressaltar que a adoção das boas práticas de Governança Corporativa é facultativa, embora não menos importante por isso. Conforme demonstrado, nossa legislação, em especial no que diz respeito às empresas que se organizam como sociedades limitadas ou sociedades anônimas de capital fechado, não demonstra muita preocupação quanto a sua organização interna, transparência, equidade, prestação de contas e responsabilidade corporativa.

A legislação passa a materializar certa preocupação com tais princípios, tão somente quando da abertura de capital de uma sociedade anônima. Isso porque a publicidade, correção das demonstrações contábeis, fiscalização, passam a ter maior relevância quando da presença massiva de sócios de capital em um ambiente também especulativo. Ademais, há uma maior pluralidade de partes interessadas (stakeholders), tais como: sócios minoritários, administradores, diretores, conselheiros, consultores, investidores, auditores, credores, fornecedores, Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”), empregados, conselho fiscal, dentre outros.

Nos demais tipos societários e na própria sociedade anônima de capital fechado, para a implementação das boas práticas de governança corporativa e consequente materialização de seus princípios na organização da empresa, é preciso que ocorra a adesão de maneira voluntária por seus administradores.

Assim, podemos inferir que para proteger o negócio familiar é preciso igualmente cuidar da família. Para tanto, é recomendável criar instrumentos e/ou órgãos que viabilizem fóruns adequados para discussão e deliberação delimitados por matéria, prestação de contas, fiscalização e tomada de decisão.

Também é importante criar alguma estrutura que proporcione uma evolução meritocrática dentro de uma empresa familiar, de modo a gerar expectativas legítimas, com amparo técnico e racional (contrato de vesting pode ser uma boa alternativa). A inexistência de regras claras e justas torna o ambiente ainda mais fértil para desenvolver crises na família, nos negócios e repelir talentos.

Ressaltamos que a implementação da Governança Corporativa é algo artesanal feito sob medida para a empresa familiar, não há fórmulas prontas, o que ocorre são escolhas de caminhos jurídicos não claramente identificáveis com base em deliberações, reflexões e escolhas. O objetivo é a implementação de medidas que viabilizem uma melhor direção, administração e controle do negócio, contudo, as ferramentas para se atingir tal objetivo são variáveis.

No sentido de manter um ambiente adequado, profissional, protegido de interferências de situações preponderantemente familiares, transparente, responsável e equitativo, podemos citar as seguintes boas práticas de governança corporativa:  

  • criação de uma holding familiar de participações;
  • instituição de um conselho de administração;
  • celebração de acordo de sócios;
  • instituição de um conselho fiscal;
  • exigência de ao menos um conselheiro independente e realização periódica de auditorias independentes.

De maneira geral o objetivo de tais estruturas é possibilitar uma participação organizada e adequada conforme aptidão e interesse dos membros da família. De igual modo, a adesão de tais práticas torna as empresas mais desejadas para se trabalhar e fazer negócios, atraindo talentos e investidores, facilitando o acesso a capitais e a fontes de suprimentos e aumentando a confiança de clientes e da comunidade

É de se registrar também como a profissionalização da empresa é tida como uma importante etapa de crescimento da empresa e verdadeiro “divisor de águas”. Conforme dados obtidos pelo IBGC (2019), em recente levantamento estatístico que se utilizou de 279 empresas brasileiras de controle familiar de capital fechado, a profissionalização da gestão foi, curiosamente, tida tanto como o principal motivo para a entrada de sócios como o 2º motivo para saída de sócios, logo atrás do motivo “conflitos familiares”.

Por fim, cumpre registrar que muitos dos problemas vivenciados no dia a dia da empresa tem como pano de fundo situações familiares mal resolvidas ou sequer trabalhadas, ressentimentos esses que podem acabar por minar o profissionalismo e imparcialidade dos envolvidos.

Além disso, a inexistência de um fórum para a discussão de assuntos familiares pode fazer com que se utilizem do fórum da empresa por uma questão de conveniência e identidade dos envolvidos.

Assim, além da Governança Corporativa, também mostra-se  assertiva a implementação da Governança Familiar,  definida como o conjunto de regras e estruturas privadas que têm por objetivo administrar as questões relativas às relações pessoais e sociais entre os familiares ligados a uma empresa.

Com o objetivo de criar uma estrutura organizada e adequada, mantendo os assuntos de família em seu respectivo âmbito, de modo a blindar o ambiente negocial de tais interferências, podemos citar, dentre outras, as seguintes estruturas: assembleia familiar e o conselho de família.

Conclusão

Conforme abordamos, as empresas familiares representam a grande maioria das empresas, sendo certo que a questão familiar pode passar a se tornar uma desvantagem competitiva, caso não sejam trabalhadas as suas sensibilidades e complexidades.

Ocorre que, para tanto, é preciso que o gestor assuma uma conduta proativa para implementá-las, pois a providência é voluntária, não havendo qualquer obrigatoriedade legal. Certamente como um apoio técnico o gestor conseguirá criar um ambiente mais propício para o desenvolvimento da empresa e para conservação dos laços de fato que devem existir entre os membros da família.

Conforme explicamos, as estruturas e providências que serão implementadas levam em conta uma série de particularidades, o que impede uma fórmula geral. Ainda assim, podemos citar algumas como exemplo: celebração de acordo de sócios, celebração de um contrato de vesting (ainda será objeto de artigo específico), constituição de uma holding familiar de participações, instituição de um conselho de administração, instituição de um conselho fiscal, são algumas providências que podem se mostrar altamente recomendáveis. Alguns desses contratos e órgãos ainda serão abordados em artigos específicos, pois extrapolam o objetivo deste artigo.

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Marcos Rabello - Rabello & Lima Sociedade de Advogados
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Mestre em Instituições Sociais, Direito e Democracia pela FUMEC na linha de pesquisa de Direito Privado: Autonomia Privada, Regulação e Estratégia Especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito Milton Campos e Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela FEAD. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos.

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